sexta-feira, 1 de maio de 2015

A história da maconha no Brasil - Parte 3 Final

Na década de 1930, a maconha continuou a ser citada nos compêndios médicos e catálogos de produtos farmacêuticos. Por exemplo, Araújo e Lucas (1930) enumeram as propriedades terapêuticas do extrato fluido daCannabis:
"Hypnotico e sedativo de acção variada, já conhecido de Dioscórides e de Plínio, o seu emprego requer cautela, cujo resultado será o bom proveito da valiosa preparação como calmante e anti-spasmódico; a sua má administração dá às vezes em resultados, franco delírio e allucinações. É empregado nas dyspepsias (...), no cancro e úlcera gástrica (...) na insomnia, nevralgias, nas perturbações mentais ... dysenteria chronica, asthma, etc.".
Foi também na década de 1930 que a repressão ao uso da maconha ganhou força no Brasil. Possivelmente essa intensificação das medidas policiais surgiu, pelo menos em parte, devido à postura do delegado brasileiro na II Conferência Internacional do Ópio, realizada em 1924, em Genebra, pela antiga Liga das Nações. Constava da agenda dessa conferência discussão apenas sobre o ópio e a coca. E, obviamente, os delegados dos mais de 40 países participantes não estavam preparados para discutir a maconha. No entanto o nosso representante esforçou-se, junto com o delegado egípcio, para incluí-la também:
"... and the Brazilian representative, Dr. Pernambuco, described it as "more dangerous than opium" (v. 2, p. 297). Again, no one challenged these statements, possibly because both were speaking on behalf of countries where haschich use was endemic (in Brazil under the name of diamba)" (Kendell, 2003).
Essa participação do Brasil na condenação da maconha é confirmada em uma publicação científica brasileira (Lucena, 1934):
"...já dispomos de legislação penal referente aos contraventores, consumidores ou contrabandistas de tóxico. Aludimos à Lei nº 4.296 de 06 de Julho de 1921 que menciona o haschich. No Congresso do ópio, da Liga das Nações Pernambuco Filho e Gotuzzo conseguiram a proibição da venda de maconha (grifo nosso). Partindo daí deve-se começar por dar cumprimento aos dispositivos do referido Decreto nos casos especiais dos fumadores e contrabandistas de maconha".
Entretanto essa opinião emitida em 1924 pelo Dr. Pernambuco em Genebra é de muito estranhar, pois, de acordo com documento oficial do governo brasileiro (Ministério de Relações Exteriores, 1959), esse médico:
"Ora, como acentuam Pernambuco Filho e Heitor Peres, entre outros, essa dependência de ordem física nunca se verifica nos indivíduos que se servem da maconha. Em centenas de observações clínicas, desde 1915, não há uma só referência de morte em pessoa submetida à privação do elemento intoxicante, no caso a resina canábica. No canabismo não se registra a tremenda e clássica crise de falta, acesso de privação (sevrage), tão bem descrita nos viciados pela morfina, pela heroína e outros entorpecentes, fator este indispensável na definição oficial de OMS para que uma droga seja considerada e tida como toxicomanógena".
O início dessa fase repressiva no Brasil, na década de 1930, atingiu vários estados (Mamede, 1945):
"De poucos anos a essa parte, ativam-se providências no sentido de uma luta sem tréguas contra os fumadores de maconha. No Rio de Janeiro, em Pernambuco, Maranhão, Piauhy, Alagoas e mais recentemente Bahia, a repressão se vem fazendo, cada vez mais energia e poderá permitir crer-se no extermínio completo do vício."
"No Rio, em 1933, registravam as primeiras prisões em conseqüência do comércio clandestino da maconha.
Em 1940, a Polícia Bahiana (...) detia alguns indivíduos que se davam ao comércio ambulante (...) como sendo maconha.
Mais recentemente, com permanência entre nós de tropas da marinha norte-americana, surgiram alguns de nossos remanescentes viciados e procuraram (...) colher lucros (...) explorando este suposto meio de esquecimento dos horrores da guerra ou o lenitivo da saudade dos entes queridos. A ação serena (...) altamente eficiente dos homens do Shore Patrol fez ruir os intentos criminosos".
Esta postura repressiva permaneceu durante décadas no Brasil, tendo para isso o apoio da Convenção Única de Entorpecentes, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1961, da qual o Brasil é signatário. Como sabemos, essa convenção ainda considera a maconha uma droga extremamente prejudicial à saúde e à coletividade, comparando-a à heroína e colocando-a em duas listas condenatórias.
"A proibição total do plantio, cultura, colheita e exploração por particulares da maconha, em todo território nacional, ocorreu em 25/11/1938 pelo Decreto-Lei nº 891 do Governo Federal" (Fonseca, 1980).
Deve-se notar que a maconha não é uma substância narcótica, e colocá-la nessa convenção de entorpecentes foi um erro. A Lei nº 6.368, de 1976, que legisla sobre o assunto, prevê pena de prisão para a pessoa que tenha em poder qualquer quantidade de maconha, mesmo que para uso pessoal.
Atualmente está em fase final no Congresso Nacional a discussão de um projeto de lei que substitui a pena de prisão por sansões administrativas no caso de posse de pequenas quantidades para uso pessoal. Esse projeto já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e deverá proximamente ser votado no Senado.
Essa maldição sobre a maconha tem reflexos negativos em outra área. Está sobejamente provado que o D9-tetraidrocanabinol (D9-THC), o princípio ativo da maconha, tem efeito antiemético em casos de vômitos induzidos pela quimioterapia anticâncer e é um orexígeno útil para os casos de caquexia aidética e a produzida pelo câncer. O D9-THC está registrado como medicamento em vários países, inclusive nos EUA (Marinol®). Mas, apesar de esses fatos estarem relatados em revistas científicas internacionais sérias, por respeitados grupos de pesquisadores, houve e há resistências, inclusive no Brasil, em aceitar essa substância como medicamento. Isso ficou patente entre nós quando, em 20 de julho de 1995, durante o simpósio Tetraidrocannabinol como medicamento?, com a presença do ministro da Saúde e do presidente do Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN), promovido e realizado no Ministério da Saúde, os médicos presentes revelaram sérias reservas aoderivado de maconha.
Por outro lado, a epidemiologia de uso da maconha no Brasil mostra que esse assunto não pode ficar mais sem um enfrentamento franco e decisivo. Assim, o consumo da planta entre estudantes vem aumentando (Galduroz et al., 2005), além de ser elevado o uso por nossas crianças que vivem em situação de rua (Noto et al., 1998). O I Levantamento Domiciliar sobre Consumo de Drogas no Brasil (Carlini et al., 2002) revelou que 6,9% dos 47 milhões de habitantes das 107 maiores cidades brasileiras já consumiram a planta pelo menos uma vez na vida, o que corresponde a 3,249 milhões de pessoas.
Contrastando com esses dados temos que, ao longo dos últimos 15 anos, o número de pessoas internadas por intoxicação aguda ou por dependência de maconha (Noto et al., 2002) não ultrapassou 300 por ano no triênio 1997-1999. Em contraste, as internações por álcool alcançaram um total de 119.906 internações no mesmo triênio.
À vista desse quadro atual, torna-se pertinente mencionar o editorial do Jornal Brasileiro de Psiquiatria publicado há 26 anos (29: 353-4, 1980):
"A falta de discriminação entre viciados em drogas pesadas e simples fumantes de maconha tem resultados altamente inconvenientes do ponto de vista social. Se os estabelecimentos especiais viessem a ser construídos para internar usuários de maconha, com toda a probabilidade, iríamos ressuscitar o famoso dilema do Simão Bacamarte de Machado de Assis. Talvez fosse melhor internar a população sadia para defendê-la dos supostos perigos dos cada vez mais numerosos adictos de maconha.
O perigo maior do uso da maconha é expor os jovens a conseqüências de ordem policial sumamente traumáticas. Não há dúvida de que cinco dias de detenção em qualquer estabelecimento policial são mais nocivos à saúde física e mental que cinco anos de uso continuado de maconha.
Finalmente, em 1987, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) também faz um editorial em que comenta o assunto (A dupla penalização do usuário de drogas ou duas vezes vítima. Revista ABP/APAL, 1987):
"Ninguém como os psiquiatras conhece melhor a miséria humana que acomete os drogados. Eles são mais vítimas do sistema de produção e tráfico – e de si mesmos – que delinqüentes. Neste sentido, julgamos oportuno trazer à discussão, sob a égide deste momento Constituinte, este polêmico tema que tem desencadeado tão graves conseqüências.
O problema das drogas em nosso país tem sofrido um julgamento apaixonado, permeado por atitudes moralistas e um tratamento policial.
O próprio ’tratamento’ compulsório dos dependentes de drogas mostra baixa eficácia, quando não absoluta inutilidade, e serve muitas vezes de artifício para beneficiar apenas os mais abastados. Ressalte-se que a particular questão do tratamento e da recuperação dos drogados deve estar integrada à rede de cuidados gerais à saúde e ao bem-estar social.
Por outro lado, há que se propor uma melhor definição do que seja tráfico, de modo a excluir a circulação não-lucrativa e incluir mandantes e financiadores, aplicando a estes penas de prisão mais severas e medidas que compreenderiam também o confisco de bens pessoais.
Finalmente, deve-se considerar com seriedade a necessidade de se promover a descriminalização do uso da maconha, estipulando a quantidade considerada porte, sem promover a liberação da droga. Esta medida ampliaria as possibilidades de recuperação do usuário, isolando-o do traficante e evitando sua dupla penalização: a pena social de ser um drogado e a pena legal por ser um drogado, esta última muitas vezes mais danosa que a primeira".