quinta-feira, 30 de abril de 2015

A História da maconha no Brasil - Parte 2

Introdução
De uma certa maneira, a história do Brasil está intimamente ligada à planta Cannabis sativa L., desde a chegada à nova terra das primeiras caravelas portuguesas em 1500. Não só as velas, mas também o cordame daquelas frágeis embarcações, eram feitas de fibra de cânhamo, como também é chamada a planta. Aliás, a palavra maconha em português seria um anagrama da palavra cânhamo, conforme mostra a Figura 1.


Segundo documento oficial do governo brasileiro (Ministério das Relações Exteriores, 1959):
"A planta teria sido introduzida em nosso país, a partir de 1549, pelos negros escravos, como alude Pedro Corrêa, e as sementes de cânhamo eram trazidas em bonecas de pano, amarradas nas pontas das tangas" (Pedro Rosado).
Essa antiga relação pode também ser vista com o que seria a primeira descrição em português dos efeitos da planta, conhecida na época pelo nome de bangue. De fato, em um livro escrito em 1563 por Garcia da Orta (1891), há um interessante diálogo entre dois personagens. Os trechos copiados a seguir descrevem efeitos tanto de euforia e boa viagem como o bode (má viagem).
"Ruano – Pois asi he, dizeyme como se faz este bangue, e pera que o tomão, e que leva?
Orta – "Fazse do pó destas folhas pisadas, e ás vezes da semente; (...) porque embebeda e faz estar fóra de si; e pera o mesmo lhe mesturão no-moscada... e o proveito que disto tirão he estar fora de si, como enlevados sem nenhum cuidado e prazimenteiros, e alguns a rir hum riso parvo; e já ouvi a muitas mulheres que, quando hião ver algum homem, pera estar com choquarerias e graciosas o tomovão. E o que (...) se conta (...) he que os grandes capitães, (...) acustumavão embebedar-se ... com este bangue, pera se esquecerem de seus trabalhos, e nam cuidarem, e poderem dormir; (...) E o gram Soltão Badur dizia a Martim Affonso de Sousa, a quem elle muito grande bem queria e lhe descubria seus secretos, que quando de noite queria yr a Portugal e ao Brasil, e á Turquia, e á Arabia, e à Pérsia, não fazia mais que comer um pouco de bangue.
Ruano – Eu vi hum portuguez choquareiro,( ... ) e comeo uma talhada ou duas deste letuario, e de noite esteve bebedo gracioso e nas falas em estremo, e no testamento que fazia. E porém era triste no chorar e nas magoas que dizia;( ...) mostrava ter tristeza e grande enjoamento, e ás pessoas que o vião ou ouvião provocava o riso, como o faz hum bebedo saudoso; ... e ter vontade de comer."
Em síntese, sabe-se hoje que a maconha não é nativa do Brasil, tendo sido para cá trazida pelos escravos africanos, conforme também atestam dois outros autores brasileiros:
"Entrou pela mão do vício. Lenitivo das rudezas da servidão, bálsamo da cruciante saudade da terra longínqua onde ficara a liberdade, o negro trouxe consigo, ocultas nos farrapos que lhe envolviam o corpo de ébano, as sementes que frutificariam e propiciariam a continuação do vício" (Dias, 1945).
"Provavelmente deve-se aos negros escravos a penetração da diamba no Brasil; prova-o até certo ponto a sua denominação fumo d’Angola" (Lucena, 1934).
No século XVIII passou a ser preocupação da Coroa portuguesa o cultivo da maconha no Brasil. Mas ao contrário do que poderia se esperar, a Coroa procurava incentivar a cultura da Cannabis:
"aos 4 de agosto de 1785 o Vice-Rei (...) enviava carta ao Capitão General e Governador da Capitania de São Paulo (...) recomendando o plantio de cânhamo por ser de interesse da Metrópole (...) remetia a porto de Santos (...) ‘dezesseis sacas com 39 alqueires’ de sementes de maconha..." (Fonseca, 1980).
Com o passar dos anos o uso não-médico da planta se disseminou entre os negros escravos, atingindo também os índios brasileiros, que passaram inclusive a cultivá-la para uso próprio. Pouco se cuidava então desse uso, dado estar mais restrito às camadas socioeconômicas menos favorecidas, não chamando a atenção da classe dominante branca. Exceção a isso talvez fosse a alegação de que a rainha Carlota Joaquina (esposa do Rei D. João VI), enquanto aqui vivia, teria o hábito de tomar um chá de maconha.
Na segunda metade do século XIX esse quadro começou a se modificar, pois ao Brasil chegaram as notícias dos efeitos hedonísticos da maconha, principalmente após a divulgação dos trabalhos do Prof. Jean Jacques Moreau, da Faculdade de Medicina da Tour, na França, e de vários escritores e poetas do mesmo país. Mas foi o uso medicinal da planta que teve maior penetração em nosso meio, aceito que foi pela classe médica. Assim descrevia um famoso formulário médico no Brasil, em 1888:
"Contra a bronchite chronica das crianças (...) fumam-se (cigarrilhas Grimault) na asthma, na tísica laryngea, e em todas (...)
Debaixo de sua influência o espírito tem uma tendência às idéias risonhas. Um dos seus efeitos mais ordinários é provocar gargalhadas (...) Mas os indivíduos que fazem uso contínuo do haschich vivem num estado de marasmo e imbecilidade" (Chernoviz, 1888).
Ao que parece, as cigarrilhas Grimault tiveram vida longa no Brasil, pois ainda em 1905 era publicada em nosso meio a propaganda (Figura 2) indicando-as para "asthma, catarrhos, insomnia, roncadura, flatos".